Margaret Pelicano

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

O PIANO, O ACORDEÃO, A VOZ






Ela era pianista. Eu cortava caminho para a ir à escola, todos os dias, pela rua onde ela morava só para ouvi-la tocar.

Os pais de minha prima, primogênita na família, tinham mais recursos e ela foi para a aula particular de piano. Eu ficava só a imaginar. Nunca tive coragem de pedir a ela para ir junto e vê-la aprendendo aquelas notas lindas, eternamente a soar nos meus jovens ouvidos.

Por outro lado, não tinha tempo a perder, a rua era o meu lugar. Sempre brincando de pique-esconde, de amarelinha, de escolinha, de cirquinho - onde a moeda para o espetáculo eram palitos de fósforo - enfim tinha o dia cheio.

Aprender piano era um desejo antigo, a melodia me enchia a alma.Mas eu teria que pensar, e quem brinca, não tem tempo para raciocinar em partituras. Era questão de proridade, e minha prioridade era pintar e bordar durante o dia todo.

Também tinha uma prima que tocava acordeão. Era coisa linda de se ver, de dançar, apreciar. Ela tocava na sala e pela janela baixa da casa eu era atraída, ia correndo olhar. As duas lindas, sempre com vestidos de organdi bordado e babadinhos. Este luxo só me era reservado aos domingos.

Como eu tinha muito que o que fazer depois da escola, era uma obrigação pintar os sete e os dezessete, era muita energia, não dava para economisar, minha veia artística voltou-se para cantar. Passava na Rádio Difusora Paraisense e deixava o meu nome para cantar aos domingos pela manhã no programa : Estrelinhas do Paraíso.

Aos 14 anos, um professor me mandou ler na sala de aula. Disse que eu tinha uma voz linda e perguntou se queria ser locutora de rádio. Um salário pequeno na época, mas eu não ganhava nada, aceitei! Treinei dicção com este professor durante um mês e me iniciei no mundo do trabalho: sem registro, sem carteira, sábados, domingos, feriados, dias santos, sem parar. Um tempo que foi bom, recebia elogios, apresentava programas de auditório, mas para o INSS o perdi. Serviu-me no futuro para ser exímia contadora de histórias; para declamar poemas para os meus alunos, ali encantados. Só assim se calavam e eu podia iniciar minha aula . Aliás, a maioria ama história e poesia!

Voltando à professora de piano. Ela era séria, famosa na minha cidade pelas sinfonias que sabia executar. Fui crescendo e admirando tal 'performance'. Um dia ouvi minha mãe dizendo q. ela estava com câncer na boca, nos meses seguintes tirou o tumor, ficou com o rosto deformado e no final do ano virou estrela. Tudo rápido e trágico.

Minha prima perdeu a professora de piano. E ficou ali morrendo de vontade de aprontar o que eu aprontava. A outra parenta também não podia ficar nas ruas de minha cidade, antigamente sem perigo algum. Coitadas, tinham que viver limpinhas e engomadas.

Eu fui deixando as brincadeiras de rua e os banhos com cacos de telha para tirar o 'macuco'. Comecei a ir às matinês dominicais, depois ao cinema nos finais de semana para flertar...

Vejam que meu tempo era curto, muita vida para organizar e gozar! No cinema, do flerte passei ao namoro. Quanto suor na hora de namorar: -ai meu Deus, lá vem ele, vai pegar a minha mão! Ele vai ou não vai pegar...e o filme passando, eu toda a me arrepiar.

Terminado o filme, saíamos separados. Sair junto era compromisso. Andar de mãos dadas era noivado, a gente ficava andando pela praça a sorrir e a se olhar.

Brasília - 25/01/2008

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escrito por Margaret Pelicano às 14:49

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